A (ir)repetibilidade da prova penal dependente da memória: uma discussão com base na psicologia do testemunho

William Weber Cecconello, Gustavo Noronha de Avila, Lilian Milnitsky Stein

Resumo


Provas dependentes da memória de uma testemunha podem ser as única evidências de que um crime ocorreu. Entretanto, os procedimentos utilizados em oitivas de testemunhas ou reconhecimentos de suspeitos podem alterar a memória original do fato. Tais riscos são ainda maiores dado que no Brasil provas dependentes da memória humana são consideradas provas repetíveis. A repetibilidade desta prova não leva em conta o possível esquecimento de informações, ou a inserção de informações pós evento, que modificam a memória original. Este artigo visa apresentar as capacidades e limitações das provas dependentes da memória humana, comparando como a legislação e procedimentos utilizados para produção dessas provas por atores de justiça. Ao final, são discutidas políticas públicas que podem auxiliar a diminuir a distância entre conhecimento científico e práticas adotadas no nosso país. Se por um lado não é possível mudar o funcionamento da memória humana, é imprescindível pensar em mudanças no sistema de justiça que ajudem a preservar esta prova que deveria ser considerada irrepetível.

Palavras-chave


prova penal; provas repetíveis; entrevista cognitiva; psicologia do testemunho; falsas memórias

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DOI: https://doi.org/10.5102/rbpp.v8i2.5312

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