Como os juízes decidem os casos de estupro? Analisando sentenças sob a perspectiva de vieses e estereótipos de gênero

Gabriela Perissinotto de Almeida, Sérgio Nojiri

Resumo


Estereótipos sobre as mulheres estão presentes em abundância na sociedade e no Judiciário. Partindo desse diagnóstico, o objetivo deste artigo é identificar quais são os principais estereótipos que dificultam o acesso das mulheres à justiça em casos de estupro, além de compreender de que forma esses estereótipos atuam nos três níveis em que eles estão imbricados na sociedade: individual, coletivo e mais geral. Para tanto, são analisadas sentenças de 1º grau do Tribunal de Justiça do estado de São Paulo, do ano de 2016. Embora a amostra que embasou o estudo seja limitada a 63 sentenças, foi possível aferir que as mulheres têm seus depoimentos valorizados apenas se corresponderem ao ideal de mulher honesta e se parecerem ter sido vítimas; caso contrário, são retratadas como alguém de quem se deve desconfiar, passando rápida e frequentemente de vítimas a culpadas. Nesse contexto, o estereótipo da mulher honesta, assim como os estereótipos de vítima, no nível individual, atuam como atalhos cognitivos na tomada das decisões judiciais, levando a sentenças enviesadas, que desconsideram as peculiaridades dos casos concretos. De modo semelhante, esses estereótipos sustentam e são sustentados, nos níveis coletivo e mais geral, por uma estrutura social que subalterniza mulheres. Esperamos que a identificação desses estereótipos e a busca por explicações acerca da sua atuação nos três níveis em que estão imbricados na sociedade auxilie a formulação de políticas públicas que visem mitigar esses estereótipos e seus efeitos e, assim, garantir a efetividade do acesso das mulheres à justiça.

Palavras-chave


Estereótipos; viés de gênero; estupro; acesso à justiça

Texto completo:

PDF

Referências


AGÊNCIA PATRÍCIA GALVÃO. Dossiê violência contra as mulheres: violência sexual. Disponível em: http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossie/violencias/violencia-sexual/. Acesso em: 10 jan. 2017.

ALMEIDA, Gabriela Perissinotto de. Estereótipos de gênero sobre mulheres vítimas de estupro: uma abordagem a partir do viés de gênero e dos estudos de teóricas feministas do direito. 2017. 149 f. Dissertação (Mestrado em Ciências) – Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.

AMÂNCIO, Lígia. Género: representações e identidades. Sociologia: Problemas e Práticas, n. 14, p. 127-140, 1993.

BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: M. Fontes, 2001. BLAY, Eva Alterman. Violência contra a mulher e políticas públicas. Estudos Avançados, São Paulo, v. 17, n. 49, p. 87-98, dez. 2003.

BORGIDA, Eugene; HUNT, Corrie; KIM, Anita. On the use of gender stereotyping research in sex discrimination litigation. Journal of Law and Police, v. 13, n. 2, p. 613-628, 2005.

BOYD, Christina; EPSTEIN, Lee; MARTIN, Andrew. Untangling the causal effects of sex on judging. American Journal of Politic Science, v. 54, n. 2, p. 389-411, 2010.

BRAGA, Ana Gabriela Mendes; ANGOTTI, Bruna; MATSUDA, Fernanda Emy. Das violências reais e simbólicas: violência sexual contra as mulheres no Brasil. Boletim IBCCRIM, n. 254, jan. 2014.

BRASIL. Lei nº 11.106, de 28 de março de 2005. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ ato2004-2006/2005/lei/l11106.htm. Acesso em: 28 jun. 2018.

BRASIL. Lei nº 12.015, de 7 agosto de 2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ ato2007-2010/2009/lei/l12015.htm. Acesso em: 28 jun. 2018.

BUDDIE, Amy M.; MILLER, Arthur G. Beyond rape myths: a more complex view of perceptions of rape victims. Sex Roles, v. 45, n. 3/4, p. 139-160, ago. 2001.

BURT, Martha B. Cultural myths and supports for rape. Journal of Personality and Social Psychology, v. 38, n. 2, p. 217-230, 1980.

COMISIÓN INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS (CIDH). Relatoría sobre los derechos de la mujer: acceso a la justicia para mujeres víctimas de violencia en las Américas. San José: CIDH, 2007.

COMITÊ DE ELIMINAÇÃO DA DISCRIMINAÇÃO CONTRA AS MULHERES (CEDAW). Recomendação Geral nº 33 sobre o acesso das mulheres à justiça. CEDAW, 2015.

COMITÊ DE ELIMINAÇÃO DA DISCRIMINAÇÃO CONTRA AS MULHERES (CEDAW). Recomendação Geral Nº 35 sobre violência de gênero contra as mulheres. CEDAW, 2017.

COOK, Rebecca; CUSACK, Simone. Estereotipos de género: perspectivas legales transnacionales. Bogotá: Profamilia, 2010.

COULOURIS, Daniella Georges. Violência, gênero e impunidade: a construção da verdade nos casos de estupro. 2004. 237 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista, Universidade Estadual Paulista, 2004.

DEBERT; Guita Grin; GREGORI, Maria Filomena. Violência e gênero: novas propostas, velhos dilemas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 35, n. 66, p. 165-211, fev. 2008.

DU MONT, Janice; MILLER, Karen-Lee; MYHR, Terri. The Role of “Real rape” and “real victim” stereotypes in the police reporting practices of sexually assaulted women. Violence Against Women, v. 9, n. 4, p. 466-486, abr. 2003.

ELEK, Jennifer; ROTTMAN, David. Methodologies for measuring judicial performance: the problem of bias. Oñati Socio-legal Series, v. 4, n. 5, p. 863-879, 2014.

FACIO, Alda. Cuando el género sueña cambios trae: uma metodología para el análisis de género del fenômeno legal. Costa Rica: ILANUD, 1999.

FACULDADE LATINO-AMERICANA DE CIÊNCIAS SOCIAIS (FLACSO). Mapa da violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil. Brasília: Flacso Brasil, 2015.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (FBSP), 9., Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: FBSP, 2015.

GREENWALD, Anthony G.; KRIEGER, Linda Hamilton. Implicit bias: scientific foundations. California Law Review, v. 94, n. 4, p. 945 – 967, jul. 2006.

GREZZANA, Stefânia. Viés de gênero no Tribunal Superior do Trabalho brasileiro. 2011. 61 f. Dissertação (Mestrado em Economia) – Escola de Economia de São Paulo, Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, 2011.

GRUBB, Amy; TURNER, Emily. Attribution of blame in rape cases: a review of the impact of rape myth acceptance, gender role conformity and substance use on victim blaming. Aggression and Violent Behavior, n. 17, p. 443-452, 2012.

GUTHRIE, Chris; RACHLINSKI, Jeffrey J.; WISTRICH, Andrew J. Inside the judicial mind. Cornell Law Review, v. 86, p. 776-830, 2001.

HESPANHA, António Manuel. El estatuto jurídico de la mujer en el derecho común clásico. Revista Jurídica, Madrid, n. 4, Universidad Autónoma de Madrid, p. 71-88, 2001.

INSTITUTO DE PESQUISA DATAFOLHA; CENTRO DE ESTUDOS DE CRIMINALIDADE E SEGURANÇA PÚBLICA. Pesquisa Nacional de Vitimização: questionário SENASP. São Paulo: Datafolha/Crisp, 2013. Disponível em: http://www.crisp.ufmg.br/wp-content/uploads/2013/10/Relat%C3%B3rio-PNV-Senasp_final.pdf. Acesso em: 10 jan. 2017.

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da saúde. Brasília: IPEA, 2014a.

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Sistema de Indicadores de Percepção Social: tolerância social à violência contra as mulheres. Brasília: IPEA, 2014b.

JOLLS, Christine; SUSTEIN, Cass R. The law of implicit bias. California Law Review, p. 1-40, 2006.

KAHNEMAN, Daniel. Rápido e devagar. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.

LEVINSON, Justin D.; YOUNG, Danielle. Implicit Gender Bias in the Legal Profession: An Empirical Study. Duke Journal of Gender Law & Police, v. 18, n. 01, p. 1-44, 2010.

LEVIT, Nancy. Confronting conventional thinking: the heuristics problem in feminist legal theory. Cardozo Law Review, v. 28, p. 1-82, 2006.

LIMA, Gercina Ângela Borém de Oliveira. Categorização como um processo cognitivo. Ciências & Cognição, v. 11, p. 156-167, 2007.

MACKINNON, Catharine A. Toward feminist jurisprudence. In: SMITH, Patricia (Ed.). Feminist jurisprudence. New York: Oxford University Press, 1993. p. 610-619.

MOSCOVICI, Serge. Representações sociais: investigações em psicologia social. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2007.

PIMENTEL, Silvia; SCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore; PANDJIARJIAN, Valéria. Estupro: crime ou “cortesia”?: abordagem sociojurídica de gênero. Porto Alegre: Fabris, 1998.

ROUND, Deborah Ruble. Gender bias in the judicial system. Southern California Law Review, v. 61, n. 6, p. 2193–2220, 1998.

SCHAFRAN, Lynn Hecht. Barriers to credibility: understanding and countering rape myths. National Judicial Education Program Legal Momentum, 2005.

SCHULLER, Regina A. et al. Jugments of sexual assault: the impact of complainant emotional demeanor, gender, and victim stereotypes. New Criminal Law Review, v. 13, n. 4, p. 759-780, 2010.

SCOTT, Joan. El género: una categoria útil para el análisis histórico. In: LAMAS, Marta (Comp.) El género: la construcción cultural de la diferencia sexual. PUEG: México, 1996. p. 265-302.

SEVERI, Fabiana Cristina. Justiça em uma perspectiva de gênero: elementos teóricos, normativos e metodológicos. Revista Digital de Direito Administrativo, v. 3, n. 3, p. 574-601, 2016.

SMART, Carol. Las teorías feministas y el discurso jurídico. In: BIRGIN, Haidée et al. El derecho en el género y el género en el derecho. Buenos Aires: Biblos, 2000.

SUPREMA CORTE DE JUSTICIA DE LA NACION (SCJN). Protocolo para juzgar con perspectiva de género: haciendo realidad el derecho a la igualdad. México: Suprema Corte de Justicia de la Nación, 2013.

TAJFEL, Henri. Cognite aspects of prejudice. Journal of Social Issues, v. 25, n. 4, p. 79-97, 1969.

TVERSKY, Amos; KAHNEMAN, Daniel. Judment under uncertainty: heuristics and biases. Science, v. 185, p. 1124-1131, set. 1974.




DOI: https://doi.org/10.5102/rbpp.v8i2.5291

ISSN 2179-8338 (impresso) - ISSN 2236-1677 (on-line)

Desenvolvido por:

Logomarca da Lepidus Tecnologia